sábado, 20 de outubro de 2012

O trabalho da consciência e da ação libertária do teatro na escola

O teatro na educação funciona como uma ferramenta de construção crítica do indivíduo. Por sua natureza coletiva, induz a cooperação,a exposição de si diante do grupo, eliminando os "cantinhos da sala". Em 2011, desenvolvi com os alunos de 9° ano, um exercício de proporção gigantesca. Em uma única apresentação, foram organizados no espaço cênico, quatro turmas com aproximadamente trinta alunos cada. Essa apresentação de quinze minutos, foi elaborada em ensaiada ao longo do terceiro bimestre. Metodologicamente, o trabalho cênico se iniciou na composição do roteiro, a partir de leituras de poesias que tinham como tema o negro, o racismo e a luta por liberdade. Deste estudo nasceu a peça: "Negros Versos de uma história brasilis".
Durante três semanas, durante as aulas, ensaiei com os alunos a construção do espaço cênico, a ação  cênica e a coreografia dos figurantes. Foi um árduo trabalho que pretendo compartilhar o texto e as imagens fotográficas realizadas desta apresentação neste blog. 


 
Negros versos
de uma história brasilis
 

“Negros versos” corresponde a um jogo de significado que tem como intenção nos remeter as diversas possibilidades de construções possíveis sobre o sentido final do encontro destas duas palavras. Todavia, a intenção última, e que legitima o diálogo com a poesia, reside na intenção de se construir uma reflexão em versos de um Brasil negro e de negros. Sendo assim, a peça se reporta a nossa formação social e cultural na tentativa de construção deste negro histórico, e suas muitas memórias destes Brasis (brasilis). 
A peça é pensada em um único ato. Um ato em deslocamento, uma procissão, ou mais precisamente, um desfile de bloco, um grande bloco cênico. E é nos espaços de deslocamentos em que se desenvolve a ação cênica.
A peça é composta por dois palhaços responsáveis pela transição entre as muitas histórias que se matizam neste desenvolvimento cênico. Estes palhaços correspondem ao próprio autor que em um exercício suassuriano, tenta através destes se fazer presente em meio às histórias. Estes palhaços são acompanhados por um conjunto de instrumentistas mascarados. As máscaras anulam as identidades a serem desveladas nas histórias. É a metáfora do silêncio, do esquecimento, que permite que os atores apenas emitam sons abafados, como que oprimidos pelo descaso histórico.
São também estes instrumentistas que constroem na peça uma atmosfera quase que carnavalesca com seus instrumentos de percussão rudimentares – feitos de caixa de papelão, latas, cabos de vassouras, colheres, garrafas plásticas, tampas de panelas entre outros materiais.
Os personagens das histórias a serem encenadas encontram-se mascarados juntos aos instrumentistas, e suas ações são marcadas pelas passagens executadas pelos palhaços.




Início da peça

Um grande desfile do bloco de instrumentistas pelo espaço (um corredor, uma rua, uma praça). A intenção é chamar a atenção do público presente no espaço e convencê-lo a seguir o bloco até um espaço aberto que comporte a abertura de um grande círculo, cujo o centro fique temporariamente vazio.
Quando conquistada a atenção do público e montado o círculo, uma última salva dos instrumentistas e os palhaços assumem o comando da peça, deslocam-se para o centro do círculo armado pelo grupo de instrumentistas e em suas ações já delimitam o espaço de ação dos demais personagens (é intenção deste tipo de disposição da peça que o público e os integrantes da peça fiquem misturados neste grande círculo):

Palhaço 1

A todos os trabalhadores.
Palhaço 2
E a todos os a toa também.

Palhaço 1
A todas as senhoras, senhoras velhinhas, meninas-moça, mocinhas. Casadas, solteiras desquitadas, largadas, sozinhas, vivas, mortas.
Enfim. A tudo que usa saia e foi batizado com nome de mulher.
 
Palhaço 2
Ou não.

Palhaço 1
Ou não o que?

Palhaço 2
Deixa pra lá mano véio, e sardemos os homi também.

Palhaço 1
(esquecido) Mas o que nós ia fazer?

Palhaço 2
Contar uma história, mano véio.

Palhaço 1
(para o palhaço 2) A! Lembrei.

(para o público) Amigo público, nós tem pra vos mercê.
Uma história pra conta. 

Palhaço 2
(para o público) E quem tem ouvido sensível.
Faiz favor de afasta.

Palhaço 1
Essa história é muito triste.
É de sofridão do além-mar.
Mas foi aqui nesta terra chamada Brasil
Que o negro
Na noite negra
Viu-se a chorá.

Palhaço 2
Mas é história.
Melhor, histórias.
De gente preta.
De pretos
pretinhos
negros
ou negrinhos

Palhaço 1
E tem a bela mulata.
Que lindo!
Quantos adjetivos que se ouvem ao xingar.

Palhaço 2
 Início de história mais triste eu nunca vi.
Homens e mulheres
Que pra cá vieram com o titulo de...

Palhaço 1
(interrompe o palhaço 2) Já sei. Deixa que eu respondo
É...
Barão.

Palhaço 2
Não.

Palhaço 1
Conde.

Palhaço 2
Não.

Palhaço 1
Visconde.

Palhaço 2
Piorou.

Palhaço 1
Desisto.
Que título é este que me falta falar?

Palhaço 2
Escravos.

Palhaço 1
Mas nós não ia contá uma história feliz?

Palhaço 2
Depende o que vos mercê considera história. Ou melhor, felicidade.
São histórias em versos
De um tar de racismo
Oh palavra feia que só serve pra nos envergonhá.




Salva de batucada duas vezes.


Palhaço 1
Brigado.
Muito obrigado.

Palhaço 2
Brigadão.




E entre a multidão ouve-se uma voz furiosa


Anônimo 1
(Rosana 8B)

Brigado não é agora que nós vai rimá.



Eis que surgem dois personagens anônimos. Andam com passos pesados, arrastam seus pés. Seus trajes são sujos e rasgados. Amarrados por grossas cordas que lhes machucam os pulsos e os tornozelos (áreas pintadas em vermelho).
Andam lentamente em círculo e repetem um mesmo poema.


Anônimo 1
(Rosana -8B)
Anônimo 2
(Ana Carol -8B)

(resmungam)
O pássaro é livre
Na prisão do ar
O espírito é livre
Na prisão do corpo
Mas livre, bem livre
É mesmo estar morto

Anônimo 1
(Rosana -8B)
Anônimo 2
(Ana Carol -8B)

(levantam a cabeça lentamente como se quisessem conversar com o público. Em um tom de voz mais alto.)
O pássaro é livre
Na prisão do ar
O espírito é livre
Na prisão do corpo
Mas livre, bem livre
É mesmo estar morto

Anônimo 1
(Rosana -8B)
Anônimo 2
(Ana Carol -8B)

(gritam)
O pássaro é livre
(...)
O espírito é livre
(...)
Mas livre, bem livre
É mesmo estar morto

Anônimo 1
(Rosana -8B)
Anônimo 2
(Ana Carol -8B)

MORTO, MORTO, MORTO



Ambos os personagens desaparecem em meio ao público presente.
Todos os presentes gritam:
MORTO, MORTO, MORTO

Uma salva dos instrumentistas.


Anônimo 3
(José – 8B)
(Sobe sobre um banco ou mesa e clama)
Que grito inútil!
Que imenso nada!
Não vês que são apenas escravos?

Anônimo 4
(Willian – 8B)
(Sobe sobre um outro banco ou mesa e clama)
Que grito inútil!
São apenas escravos.
São nada.

Anônimo 5
(Gustavo - 8B)
Mas “Não é o grito
A medida do abismo?
Por isso eu grito.
(incita a todos a gritar)
E tornemos a gritar.

Anônimo 3
Anônimo 4
Anônimo 5
E o restante do grupo
(Michael, Ralfh, Daniel e Alessandro -8B)

MORTE, MORTE, MORTE.
Ou LIBERDADE.

Anônimo 6
(Nogueira - 8B)
(em meio à multidão)
Seu grito não é inútil irmão.
Fez meu espírito ressuscitar.

Anônimo 7
(Gabriel – 8B)
(Sobe sobre uma das mesas e com os braços abertos ao vento, como que se quisesse abraçar a humanidade, grita a todos)

Sou negro
Meus avós foram queimados pelo sol da África
Minh’ alma recebeu batismo dos tambores,
Atabaques, gongues e agogôs.

Todos
Gabriel, Nogueira, Sabrina, Renato

(gritam)
SOU NEGRO
Anônimo 8
(Bruna – 8C)
(entre sôfrega no círculo e olha desorientada para todos os presentes)
Sim.
Minh’ alma também recebeu batismo dos tambores.




Uma salva dos instrumentistas.


Anônimo 9
(Ana Gisele -8C)
(entra em cena e tenta desesperadamente retirar o Anônimo 8 do centro)
É uma louca esta ai.
Ousarão acreditar?

Palhaço 1
(entra em cena e empurra o personagem para fora do círculo)
Cale-se criatura.
É a voz do silêncio querendo falar.

(para o público)
São os senhores da história e suas manias.
Acreditam? Eles não deixam ninguém falar!
(curioso, sobe sobre a mesa olha cuidadosamente para o público e pergunta)

Alguém mais?

Anônimo 10
(Medely – 8C)
(no meio da multidão uma jovem caminha calmamente para o centro)
Sim. Eu.
Eu tenho dúvidas, pois de mim nada sei.
Contaram-me que meus avós vieram de Luanda
Como mercadoria de baixo preço.

Anônimo 11
(Kawely – 8C)
(Sobe sobre a mesa e grita como se estivesse em uma feira)
Olha um negro.
Um negro baratinho.
Compre dois negros adultos e ganhe um negrinho.

Anônimo 9
(Ana Gisele -8C)

(aproxima-se do Anônimo 11)
Tem dentes bão?
Anônimo 11
(Kawely – 8C)
Tem sim meu senhor.
É negro de Luanda.
Olha as canela sinhô.
Fina boa de trabaiá.

Anônimo 9
(Ana Gisele -8C)

Sei não mercadô, esses negro de Luanda é bão de procriá.
Palhaço 2
(entre em cena em empurra os dois negociantes para fora do espaço cênico) Foram em mercados de escravos que muitas histórias
Nesta terra se deram por iniciá, assim como outras tantas se viram findá.

Anônimo 10
(Medely – 8C)

Esta é a raiz que não conheço?
(para o público) Onde fica Luanda?
Meus avós vieram de Luanda.
Mas onde fica Luanda?
(girando)
Onde fica Luanda?
(girando)
Onde fica Luanda?
(sai correndo do centro do círculo)

Palhaço 1
(trás consigo Casa Grande e Senzala, os três estão abraçados)
É muito intrigante esta tar história do Brasil, somos um país que se diz livre e justo, mas o que eu vejo é a podridão de nossa história que é empurrada para debaixo do tapete.

Casa Grande
(Danilo – 8C)

Tem razão cumpadi.
Tamo nós aqui que não lhe deixa menti.
Nós semo
Casa Grande e Senzala
Grande livro que fala
Desta nossa leseira brasileira.

Palhaço 1
É uma terra de lesado.
Pinel.
Veja só se pode?
Um país que se construiu se dividindo em raças.

Senzala
(Vitor - 8C)
(para o público) É, salve nossas mulatas.
Que importa? É lá desgraça? Essa história de raças?
(grita exaltado) O Brasil é uma Democracia Racial.



Um salva dos instrumentistas. Todos cantam em coro dividido em pergunta e resposta:
(coro 1) QUE PAÍS É ESTE?
(coro 2) É A MENTIRA DO BRASIL
(coro 1) QUE PAÍS É ESTE?
(coro 2) É A MENTIRA DO BRASIL


Anônimo 12
(Alisson - 8C)
(Entra correndo se dirigindo aos três e diz)
Mataram mais um pretinho.

Casa Grande
Senzala
Palhaço 1

Por quê?
Anônimo 12
(Alisson - 8C)
Não sei.
Mas era preto mesmo.

Casa Grande
Senzala
Palhaço 1

Mas isso é crime?
Anônimo 12
(Alisson - 8C)

Tudo depende da ocasião.
(e sai correndo de cena seguido pelos outros três personagens)
Anônimo 13
(Greice – 8C)
Anônimo 14
(Felipe – 8C)
Anônimo 15
(Cláudio – 8C)

(entram se esfregando)
Ai essa sujeira que não sai de mim.
(gritam) que nojo
(correm para o público)
Anônimo 16
(Letícia Karen – 8C)
Anônimo 17
(Higor – 8C)
(entram com espelhos nas mãos)
Irmãos. Maninhos.
Eu trouxe a cura para esta sujeira.
Cadê nossos manos?
(mostram os espelhos na direção dos presentes)
Se olhe camará.
O que vê?
Vê tu?

Anônimo 18
(Willian – 8C)
(entra em cena encarando os espelhos, algo quase que hipnótico)
Eu não vejo nada mano véio.
Só tem eu ai no reflexo do espelho.
Não tem nada.

Anônimo 17
(Higor – 8C)
Mas como nada?
(grita desesperado) É você.

Anônimo 18
(Willian – 8C)
Passe sua vida inteira não sendo visto.
Permita que a história apague o seu passada.
Ai entenderas porque não vejo nada.

Cruz e Souza
(Lucas Fernando – 8A)
(entre em cena e dialoga com os espelhos e o nada)
(grita) Não me suporto.
Dor e asco desse apodrecido e letal
Pau de raça que deu-me este luxurioso
Órgão nasal que respira com ansiedade
Todos os aromas profundos e secretos.

Anônimo 16
(Letícia Karen – 8C)
Anônimo 17
(Higor – 8C)

Por que tanto ódio mano véio?
Cruz e Souza
(Lucas Fernando – 8A)

Sou negro.
Anônimo 16
(Letícia Karen – 8C)
Anônimo 17
(Higor – 8C)

Isso nós já percebemos. Mas o que há de mal nisso?
Cruz e Souza
(Lucas Fernando – 8A)

Oras, queria eu não ser.
Ouço vozes. Silêncio.

Coro
(Letícia Silva – 8A, Marcela – 8A, Janaine 8A, Nayara 8A.)
Entram em cena andando em círculos e repetindo o poema sempre se direcionado para os personagens no centro)

Um triste negro, odiado pelas costas cultas, banido da sociedade, mas sempre batido, escorraçado de todo o leito, cuspido de todo o lar como um leproso sinistro!
(Gritam) Pois como?
Ser artista com esta cor?

Cruz e Souza
(Lucas Fernando – 8A)

(começa a gritar)
Não. Não.
Eu não mereço este tormento.
Anônimo 16
(Letícia Karen – 8C)
Anônimo 17
(Higor – 8C)

(Começam a girar em torno de Cruz e Souza)
Olhe-se camará. (repetem várias vezes esta passagem)
Palhaço 1
(sobe a mesa e grita)
Chega.

Palhaço 2
(sobe a mesa e grita)
Ele mandou parar.

Cruz e Souza (Lucas Fernando – 8A)

Mas e o meu ego de artista?
Palhaço 2
Você não ouviu aquele palhaço. Ponha-se daqui para fora.
(saem todos – Cruz e Souza, anônimos 16, 17 e o coro)

Palhaço 1
Esta peça pretende-se um jogo.
Um jogo no falar.
Pois ser negro no Brasil.
Tem muitas formas de contar.
Vamos parar com esse complexo mesquinho
Que apequena nossa forma de lutar.
Levanta a cabeça mano véio
Só não pode abaixar a cabeça
E permitir a história te ignorar.

Palhaço 2
Aplausos pro meu mano véio que a peça acabou.


A peça é encerrada com uma grande batucada.

 

 

imagens fotográficas da apresentação